Não tendo obtido resposta satisfatória às reclamações pelos atrasos dos comboios e pelo desconforto de viajar em carruagens sobre lotadas e mal limpas apresentadas à CP, Rita Constâncio, moradora no Monte Abraão e utilizadora diária da linha de Sintra, decidiu apresentar uma queixa ao Provedor de Justiça. Aqui fica o relato desta batalha e as suas reflexões sobre o assunto.
Linha de Sintra: comboios sobrelotados e serviço público posto em causa
Por Rita Constâncio
Sou utilizadora assídua dos comboios da CP da linha de Sintra e, tal como muitos cidadãos e cidadãs, há anos que me deparo com o problema dos comboios lotados. Nas horas de ponta não estão asseguradas condições dignas para os utentes dos comboios. O cenário apenas dá algumas tréguas nos meses de Verão, por óbvias razões. Sendo Queluz-Belas a minha estação de origem, as minhas queixas reportam-se na perspetiva da utilização da linha de Sintra, a partir desta estação, no sentido do Rossio e Oriente, mas por certo poderão ser replicadas por muitos outros utentes da linha, com origem em outras estações.
Assim, farta de anos e anos deste pesadelo, em que acabo por chegar ao trabalho cansada e zangada com este estado de coisas e a sentir-me tratada como um “boi numa manada”, e após ter feito uma reclamação no site da CP em 2015 que teve uma resposta absolutamente insatisfatória, fiz uma 2ª tentativa para ser ouvida, desta vez endereçando uma longa queixa ao provedor de justiça, a 16-12-2016.
Em traços gerais, os pontos principais da queixa foram os seguintes:
- Sobrelotação do ramal do Rossio
Esta linha do Rossio que seria a única, nos moldes atuais, por ter menos utentes, que poderia oferecer conforto e dignidade aos que nela viajam, viu os seus comboios encolhidos em tamanho. Efetivamente a grande maioria dos comboios que passam neste ramal têm apenas metade das carruagens (são os comboios curtos de Meleças-Rossio), pelo que estão sempre cheios. Apenas passam 2 vezes por hora comboios longos (Sintra-Rossio), estes sim, com espaço para os utentes viajarem com dignidade. Portanto, salvo melhor opinião, neste ramal, bastaria apenas aumentar o número de carruagens para termos a questão sanada.
- Sobrelotação do ramal do Oriente, um autêntico caos que subsiste há anos, em todos os comboios que passam nas chamadas horas de ponta. Aqui, salvo erro, todos os comboios são longos. Teria necessariamente que haver maior frequência dos comboios.
Era corriqueiro, aliás, os comboios oriundos de Sintra, ao chegarem a Sete-Rios, no período da manhã, estarem tão lotados que em certos dias que ficavam parados na estação, corria o boato que alguém tinha desmaiado por não se sentir bem no meio daquele pandemónio.
- Por último acrescentei o seguinte…”Considero que deveria haver um mínimo de preocupação com a dignidade dos passageiros, ainda mais tendo em atenção que o valor dos passes e bilhetes tem subido muito nos últimos anos, pelo que deveria corresponder a um aumento real da qualidade dos serviços.
Falamos de PESSOAS que passam a sua vida inteira de trabalho, anos e anos a fio, num total desconforto, desrespeito e chegando já ao trabalho num estado de cansaço e com os nervos em franja. Além disso há que considerar que é de extrema importância que sejam dinamizados transportes públicos que ofereçam qualidade e conforto a bem do ambiente, minimizando os impactos do trânsito automóvel na zona de Lisboa. Com uma oferta de serviço assim não espanta que existam muitos cidadãos que prefiram passar horas no trânsito, entupindo cada vez mais a cidade e todas as vias à volta desta….”
A resposta de volta do Provedor de Justiça em 22-06-2017, foi a seguinte:
(o texto é longo, mas parece-me que vale a pena partilhá-lo na íntegra para que cada um faça a sua análise e retire as suas conclusões)
“…… Recebida a queixa por V. Ex.ª apresentada sobre o assunto em epígrafe, a Provedoria de Justiça iniciou a instrução do procedimento junto da Direção de Marketing da CP, questionando essa empresa CP sobre as providências que ponderava adotar no sentido de atenuar a sobrelotação dos comboios da Linha de Sintra às horas de ponta da manhã e da tarde. Em tal diligência foi a CP alertada para os deveres que lhe incumbem enquanto operadora do transporte ferroviário, conforme há muito fixado pela jurisprudência, designadamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.19981 , segundo o qual “(…) A superlotação de um comboio é incompatível com os deveres, por parte da CP, de ter o material circulante necessário para a execução do serviço com regularidade, eficiência e segurança e de manter em circulação um número de comboios adequado à intensidade do tráfego (…)”.
Em resposta, veio a CP informar a Provedoria de Justiça de que, atualmente, não é possível aumentar o número de serviços na Linha de Sintra devido ao estrangulamento associado à infraestrutura presente na estação de Agualva-Cacém, estação de bifurcação para a Linha do Oeste (comboios para Mira Sintra-Meleças) e Linha de Sintra.
Mais acrescentou que, de forma similar, na Linha de Cintura não é possível aumentar o número de serviços por não existirem canais de circulação disponíveis, admitindo ainda a existência de um problema de capacidade devidamente reportado à Empresa IPInfraestruturas de Portugal, responsável pela atribuição e gestão dos canais de circulação. Tendo por base esta informação, foi a instrução do procedimento reorientada para a “Infraestruturas de Portugal”, cuja Direção de Comunicação, Imagem e Stakeholders da IP veio defender que estão “(…) ainda disponíveis 2 canais por hora em cada sentido de circulação, entre Mira Sintra-Meleças e o Rossio, pelo que seria viável realizar mais 2 comboios por hora em cada sentido de circulação, mesmo em hora de ponta(…)” Quanto à Linha de Cintura, caso o aumento de comboios proveniente de Mira Sintra- -Meleças não fosse direcionado para a Estação do Rossio mas antes para esta linha, admite-se que existiriam alguns problemas de capacidade, uma vez que se trata da linha nacional com mais comboios a circular, mas “(...) neste caso, a atribuição de novos canais horários para serviços com origem/destino na Linha de Sintra dependeria de uma reformulação dos horários atuais e, como é natural, essa reformulação teria que ter por base uma proposta da CP e uma articulação com o operador Fertagus (…)”.. Perante esta posição, a Provedoria de Justiça retomou as diligências instrutórias junto da CP, insistindo na necessidade de serem tomadas as providências necessárias para garantir uma maior oferta de transporte ferroviário na Linha de Sintra nas horas de ponta. Em resposta, a CP admitiu eventuais problemas de pré-sobrelotação no troço Agualva- -Cacém/Oriente, mas reiterou que na Linha de Cintura não é possível aumentar o número de serviços por não existem canais de circulação disponíveis. De todo o modo, a CP mostrou-se disponível para encontrar uma solução, a médio prazo, que permita ultrapassar a atual limitação de recursos materiais (material circulante) e humanos, que não permite um aumento imediato da oferta nesse percurso. Mais acrescentou a CP que “(…) o horário em vigor está a ser acompanhado de perto para análise de eventuais situações que estejam a causar menor conforto aos clientes, de forma a serem reajustadas assim que sejam reunidas as devidas condições (…)”. Ponderada esta posição, nomeadamente quanto à admissibilidade de problemas de (sobre)lotação na troço Agualva-Cacém/Oriente, mas, sobretudo, quanto aos esforços que se confia que a CP empreenderá no sentido de ultrapassar esse problema, inclusive através do aumento da oferta nesse percurso e no reajustamento dos respetivos horários, procedeu-se ao arquivamento do procedimento a que havia dado origem esta queixa. Tal decisão não significa que o Provedor de Justiça tenha prescindido de acompanhar a evolução deste assunto, pelo que foi solicitado à CP que mantenha este órgão do Estado informado sobre os resultados dos trabalhos que já foram iniciados, ou que se espera que o venham a ser com a maior brevidade possível, no sentido de alcançar aqueles objetivos.”
Reflexões sobre a resposta:
- É muito grave o facto de a CP não assumir que existe sobrelotação nas linhas do Rossio e Oriente (sendo esta última pior, gritante mesmo). Só se refere a eventuais problemas de pré-sobrelotação no troço Agualva- -Cacém/Oriente. Sobre a linha do Rossio, nada. A CP no fundo não quer assumir que não está a cumprir o dever que lhe incumbe enquanto operadora do transporte ferroviário, conforme há muito fixado pela jurisprudência.
- Aparentemente as “Infraestruturas de Portugal” e a “CP” parecem contradizer-se, a primeira ao afirmar que há condições para a circulação de mais comboios, mesmo em hora de ponta; no caso do Rossio mais 2 comboios por hora sem qualquer restrição; para o Oriente, teria que haver ajustamentos de horários em articulação com a FERTAGUS. A CP por seu lado reitera que não é possível aumentar o número de serviços por não existirem canais de circulação disponíveis…
- Parece-me que seria fácil, minimizar a sobrelotação do ramal do Rossio, apenas aumentando o n.º de carruagens, o que permitia também de alguma forma minimizar a confusão do ramal do Oriente, enquanto não tem solução à vista, pois possibilitava “desviar” muitos utentes para o Rossio. Aliás, há que dizer que já muitos utentes fazem este desvio para fugir ao caos do Oriente…
Mas nem isso a CP está sensibilizada para fazer. O conceito de sobrelotação da CP difere do senso comum do utente.
- “O horário em vigor está a ser acompanhado de perto para análise de eventuais situações que estejam a causar menor conforto aos clientes, de forma a serem reajustadas assim que sejam reunidas as devidas condições” – há anos que este problema se coloca, quantos tempo mais os utentes têm que esperar por essa análise do horário e pela tomada das devidas diligências?
- Mais, o Provedor de Justiça, após ter afirmado que a sobrelotação viola os direitos do cidadão, toma a decisão de arquivamento baseado apenas numa declaração de intenções da CP “a médio prazo”... Ou seja, há violação de direitos mas pode ser que alguém um dia a resolva….
- O desinvestimento nos transportes públicos levou-nos a este estado de coisas: uma conversa de surdos entre utentes e a CP, esta última não querendo admitir claramente a existência de problemas, mas apenas eventuais problemas.
Como cidadãos e cidadãs ficamos à espera de eventualmente virmos a ser tratados com a dignidade que merecemos.