O cenário parece o de uma campanha normal: candidato, acompanhado de activistas, dirige-se aos comerciantes e à população presente no Mercado do Cacém e dá início a uma conversação.
É aqui que tudo muda. O candidato é Amílcar José Morais, cidadão surdo e o número 3 na lista do Bloco para a Assembleia Municipal de Sintra. Fala por gestos, fazendo uso da Língua Gestual Portuguesa que, faz hoje 20 anos, foi reconhecida pela constituição como língua oficial do país.
O cidadão, a cidadã, desconfia. Diz que não compreende e fala mais alto. Insiste na pergunta. Amílcar faz sinal com os dedos como se falasse de dinheiro, aponta a banana que não tem preço, dá a entender que quer uma camisola. A conversa está bloqueada.
Entre em cena Sofia Figueiredo, intérprete de LGP. Estabelece a ligação e dá som à voz do vice presidente da Federação de Associações de Surdos: “O meu nome é Amílcar Morais, sou cidadão surdo e uso a LGP para comunicar.” Os olhos da vendedora iluminam-se: “foi por isso que não percebi o que me queria”.
Amílcar prossegue e Sofia traduz. Pergunta preços, explica a importância de políticas que olhem para o diferente como um igual, ensina gestos para dizer bom dia e obrigado. Apresenta Carlos Carujo, candidato do Bloco à Câmara de Sintra e algumas das ideias do manifesto “Sintra em Comum”.
Nesta conversa de surdos ninguém grita ou se desentende. O convite de olhar para a diferença e de compreender que os surdos e as surdas são pessoas de corpo inteiro e com direitos democráticos que importa defender e reforçar é claro e assumido.
Nova paragem, agora num serviço de atendimento público por onde passam milhares de pessoas. A funcionária que nos recebe reconhece alguns dos gestos, mas rapidamente se perde na conversa, “tive 60h de formação de LGP mas foi pouco, falta prática e uma reciclagem” confessa-nos. O mesmo com a sua colega, prova que não basta dizer que se deu formação, são precisas medidas que façam da LGP uma constante do nosso dia a dia.
Em Sintra, como no país, milhares de cidadãos e cidadãs com deficiência estão privados dos seus direitos mais básicos por barreiras físicas, de comunicação ou de organização dos serviços públicos.
Quando a população surda se dirige a um serviço público, como o Centro de Saúde, a Loja do Cidadão, uma Escola ou uma Biblioteca, raramente encontra ao seu dispor alguém com conhecimento de Língua Gestual Portuguesa com quem possa comunicar.
São precisas medidas para garantir à comunidade surda o acesso a estes recursos e as autarquias podem ter um papel decisivo nessa matéria. A câmara de Sintra orgulha-se de ter dado formação a alguns dos funcionários. Mas faltou a continuidade, para que se tornem fluentes. Faltaram também medidas para alargar o ensino da LGP a crianças que têm audição, para que aprendam desde cedo a usar esta ferramenta, e a adultos que também a queiram aprender.
Também os órgãos eleitos estão parcialmente vedados a estes cidadãos e cidadãs, uma vez que as reuniões não costumam ser acompanhadas por um intérprete. Amílcar Morais tem a convicção que será deputado do Bloco nos próximos quatro anos. Nas palavras de Carlos Carujo, “se não for eleito directamente, será deputado em regime de rotação. Para fazer ouvir a sua voz, para lutar pelos direitos dos surdos e das pessoas com deficiência, mas também do cidadão e da cidadã sem deficiência que precisa de autarcas empenhados nestas e em todas as causas”.