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Travessa dos Moleiros

Travessa dos Moleiros

Crónica de André Beja

O que gosto mesmo nas campanhas eleitorais, e no activismo político em geral, é de ouvir o que as pessoas têm para contar. Há de tudo: raiva e zanga, dramas, episódios caricatos, histórias de vida e de lutas, relatos de injustiças e de problemas, rasgos de humor, boatos, mitos, propostas, incentivos... De tudo.

Desengane-se quem pensa que isto se trata de uma conversa para dia de reflexão. Como diz uma amiga, tenho veia de antropólogo amador. Gosto mesmo.

Do que fui ouvindo nos últimos meses há uma conversa que me anda a remoer a imaginação. A da Travessa dos Moleiros, um beco sem saída que fica para os lados da Assafora, onde moram 20 famílias.

Atravessar o interior do concelho de Sintra em autocarro foi tarefa para quase um dia. Entravamos e saíamos dos autocarros, sujeitos a horários e a atrasos, falando com quem neles andava. 70 km pelas chamadas zonas rural e da pedra, onde a linha de Sintra não chega.  

A penúltima etapa levou-nos pelas estradas do norte, a meio de uma tarde que, de repente, se pintou de chumbo. A viatura ia quase cheia, com estudantes, mulheres de regresso do trabalho e idosos. Perante o estranho a indiferença, as queixas da falha dos serviços e dos preços, os elogios à firmeza de Catarina Martins e às geringonças que fazem andar os dias. E histórias.

No fim da ronda, mas ainda longe do destino, um casal de idosos. Já me tinham ouvido falar com outra passageira e, via-se, esperavam que chegasse a sua vez. Sorriso que convida para o banco da frente. Lá fomos, soltando o novelo.

Um casamento de quarenta e muitos anos. A guerra colonial (e a pesca!), a vida de trabalho na empresa de autocarros, os cortes radicais na pensão pela via da reforma antecipada. A família que é grande e o orçamento que é magro. Os horários e os preços das viagens – ela paga 63 euros pelo passe de rede e o neto, que estuda em Lisboa, uma factura mensal de 130 euros que, mesmo com apoio camarário, são muito difíceis de suportar.

E foi assim que veio à baila a Travessa dos Moleiros onde, contaram-me, se sentem “cidadãos de terceira, que pagam IMI e outras taxas mas que nunca viram o alcatrão chegar ao portão de casa” e lhes falta saneamento digno desse nome.

Apesar de anos e anos de insistência com a Junta e a Câmara, não há meio de ver o fim ao problema. Processo perdidos, falta de resposta, expedientes burocráticos… Nestas andanças, alguém lhes terá dito que “devem ter irritado gente importante com isto”. Não sei se houve calos pisados, mas lá que a coisa não anda...

Falámos ainda das autarquias e da situação do concelho. Dos “reciclados” e dos “vira casacas”, dos autarcas de gabinete. O coração bate-lhes à esquerda, fui esclarecido, mas mais não me disseram e eu também não quis saber. “Nunca falhei um voto, ainda não sei como vou fazer desta vez, mas vou votar”, dizia-me ela.

Sem que desse por isso, a viagem estava a acabar e o sol brilhava de novo. Ao sair do autocarro deixei-lhes um manifesto mas não recomendei o voto nem fiz as promessas que se esperam de um candidato. A conversa esteve boa até ao fim, tínhamos mais em que pensar.

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